domingo, 1 de dezembro de 2013

Areia e Tempo na Narrativa de uma Vida [4/4]

Ler a parte 3/4

Áurea e D. Maria travam constantes batalhas contra o destino, provável culpado por ter lhes aprisionado num local ermo e inóspito. Áurea explicita sua insatisfação a Vasco algumas vezes, seja por diálogo seja por comportamento arredio. Durante o pouco tempo de estadia do esposo no areal, a jovem grávida ocupa o papel então dedicado a mulheres daquela época. Ela precisa obedecer ao marido. D. Maria, mais serena, vê-se motivada a seguir o desejo da filha quando Vasco começa a ter ímpetos violentos. Ela passa a se preocupar com o futuro ao lado de um homem descontrolado. Ambas as mulheres iniciam a busca por uma rota de fuga.

Conflito de gerações

Várias tentativas de fuga são frustradas por infortúnios. Primeiro, D. Maria suborna um dos membros da caravana a levá-las dali. No dia seguinte ao acordo, o grupo foge, deixando ela, a filha e Vasco sozinhos. Após a morte do patriarca, o desejo aumenta ainda mais. Elas veem-se completamete isoladas, dependentes da ajuda dos nativos da aldeia quilombola. Apesar de novas tentativas de fuga serem feitas, elas passam gradativamente a assumir o controle de suas próprias vidas. Elas não precisavam mais viver à sombra de um homem. A personalidade das duas mulheres vão se distanciando. D. Maria passa a aceitar a nova vida, enquanto na jovem Áurea o sentimento de não pertencimento cresce cada vez mais.

A gravidez de Áurea avança de estágio e elas se encontram impedidas de prosseguir com as tentativas de fuga. Após o nascimento da filha Maria, a ansiedade volta a tomar conta de Áurea. Maria cresce vendo a insatisfação da mãe com a vida daquele local. Aos poucos, esta passa a ser também a sua insatisfação. Ela, então, cresce com o mesmo desejo de não pertencimento, mesmo sem ter conhecido a vida na cidade.


Uma discussão ocorrida aos 45min 07seg ilustra a desavença entre D. Maria e Áurea e  revela uma grande mudança de personalidade da figura feminina da mais velha. Seguem trechos dessa discussão:
Áurea: “A senhora já esqueceu como é lá fora, mãe?”
D. Maria: “Não, não esqueci, mas não sinto mais falta.”
(…)
D. Maria: “E lá fora, o que você espera lá fora? O que de bom a vida pode te oferecer lá fora?”
Áurea: “Eu não vou me enterrar aqui, mãe.”
(…)
D. Maria: “Eu gosto daqui. Aqui homem nenhum manda em mim.”
(…)
Áurea: “Desde que essa menina nasceu que eu espero ela crescer pra ir embora desse lugar.”
Percebe-se, portanto, a diferença entre os anseios da mãe e da filha. E, principalmente, é possível notar o motivo que levou D. Maria a não querer mais se mudar. Naquele local distante, as convenções sociais que regem o papel da mulher da sociedade não tem valia. É claro que há uma definição clara de papéis ditadas pelo gênero. Contudo, ali elas não ocupariam um papel secundário. Afinal, elas lideravam a própria família.


Após a morte de sua mãe, Áurea prossegue nas tentativas de fuga, levando sempre a filha consigo. Maria cresce, torna-se adulta e, apesar de não apresentar a ânsia por sair do local, sente-se incomodada com o destino sem muitas opções. A personagem apresenta características totalmente diferentes das demais personagens femininas da trama. Maria é menos contida, mais espontânea, soando até mesmo agressiva. Parece ditar a própria vida, não aceitando, por exemplo, o papel esperado dela na aldeia. Não apenas o comportamento, mas a roupa utilizada confirma essa percepção. O vestido branco de alça possui decotes e não é comprido, deixando, por descuido proposital, sua roupa íntima à mostra.

A sequencia que se inicia aos 1h 21min 13seg demonstra a personalidade forte da filha de Áurea. Na cena, Maria aparece descendo uma duna rapidamente – atitude esperada de “moleques” –, entra em casa, recebe prontamente uma reclamação, ignora e inicia a seguinte discussão:
Maria: “Tem café?”
Áurea: “Tinha de manhã.”
Maria: “Perdi nada.”
Áurea: “Você não tem nada pra perder, minha filha.”
Maria: “Não tenho mermo, mãe. Não busco sal, não salgo peixe, não faço filho.”
Áurea: “Filho você faz. Só não deixa nascer.”
Maria: “Mas não faz falta também. Mirinho aí, já são quantos, Mirinho? Massu, que é jeitoso, podia fazer um cercadinho aí fora pros filhos do Mirinho. Mulher ainda nova... Até o fim da vida, lotava um cercadinho inteiro.”
Áurea: “Por que você não toma coragem e vai embora daqui, minha filha?”
Maria: “Eu vou, mãe.”
Áurea: “Então, vai, vai embora. Você não tem filho, não tem nada que te prenda aqui. Toma coragem e vai embora. Toma um rumo na vida.”
Maria: “Que rumo a senhora quer que eu tome na vida, mãe? O seu?”
Áurea: “Eu tomei um rumo na minha vida. Eu tenho uma família.”
Maria: “Essa família não é sua, mãe.”
O diálogo trocado não revela apenas as diferenças de personalidade da mãe e da filha. Ele mostra ao espectador que somente um lugar ermo, distante da moralidade dominante dos grandes centros urbanos, poderia produzir uma personalidade como a de Maria. A filha tem domínio absoluto sobre seu corpo, sobre seu destino. Ela questiona a escolha feita pela mãe, antes obcecada em ir embora do local. O filme exibe uma família na qual, a cada geração, uma mulher assume uma nova postura, sempre mais firme e decisiva. No entanto, a sequencia final do filme mostra que, em meio a tantas diferenças, há uma forte semelhança.

Análise do fim do filme
a partir de 1h 41min 49seg


A sequencia final do filme inicia-se com o plano geral capturando a paisagem das dunas com uma grande lagoa em volta. A câmera não está fixa, ela movimenta-se horizontalmente, passeando pela paisagem calmamente até um corredor de areia, por onde se vê um carro apontar frontalmente. Ao fundo, inicialmente em off, o barulho do motor de um veículo. Ouve-se sons da água da lagoa sendo agitada pelo vento. Pássaros cantam livremente. O ar é bucólico, de muita tranquilidade. O carro avança até que a câmera o capte lateralmente e ele preencha todo o enquadramento. Agora, o som do motor ocupa toda a percepção auditiva. O carro para e o motor é desligado.

O próximo plano apresenta a câmera fixa no banco traseiro do carro. Uma mulher está ao volante, mas não é possível ver seu rosto. A identidade da motorista é reservada. Ela dá um suspiro e abre a porta do carro. Denota-se certa excitação na mulher. Algum encontro está para acontecer.

Os planos são mais curtos, mas não induzem à ação. Agora, a câmera está fixada abaixo do veículo. Vê-se apenas os pés da mulher, saindo do carro em direção ao chão. Ela calça sapatos vermelhos, uma tonalidade forte, contrastante com as cores presentes até então, sempre frias e discretas. Provavelmente, trata-se de alguém que acabara de chegar da cidade.

No plano seguinte, a personagem é mostrada frontalmente. Ela é vista de corpo inteiro, ao lado do carro. O figurino confirma se tratar de uma moradora de um centro urbano. Percebe-se o nervosismo. Ela olha ao redor como quem tenta reconhecer a paisagem. Os passos vão na direção da câmera. Ouve-se cacarejo de galinha. A casa é certamente habitada.

A mulher aproxima-se da casa. A cena é vista novamente do banco traseiro do veículo. Desta vez, a câmera não está fixa. Ela movimenta-se para esquerda, desvelando todo o cenário. Porém, não se vê ninguém além da visitante. Em seguida, vê-se a área externa a partir do interior da casa, pela porta. A mulher aparece, prestes a entrar na casa. Ouve-se ruídos (som indireto) que apontam para o manuseio de objetos, talvez o preparo de algum alimento. Alguém está na casa, mas ainda não é mostrado. A todo o momento, o recurso do som indireto é utilizado para causar suspense. O encontro entre as personagens não é desnudado de imediato.

Num plano subjetivo, a partir do olhar da visitante, um travelling mostra toda a casa. Neste momento, reconhece-se objetos de decoração e móveis antigos, aqueles mesmos trazidos por Áurea e D. Maria. Eles estão dispostos cuidadosamente, formando um ambiente pessoal. Alguém tornou aquele o seu lar.


A câmera aproxima-se de uma mesa, na qual se vê Áurea sentada, de costas. A fonte dos ruídos é, então, revelada. A velha mulher percebe a presença de alguém e volta-se lentamente para trás. Ela veste luto – Seu Massu está morto. Ela para e olha demoradamente para o espectador, ainda sob plano subjetivo, como quem quer ter certeza do que vê diante de si. Finalmente, diz, aproximando-se, em close-up: “Maria. Filha.” Elas se abraçam com ternura. 

O soldado que acompanhara a expedição de cientistas retornou ao local para transportar o corpo de um piloto cujo avião fora abatido durante a guerra. Ele conhece Maria e reencontra Áurea, que lhe pede para levar a filha consigo para uma cidade mais próxima, onde ela possa recomeçar sua vida e ser feliz. Agora, anos mais tarde, ela retorna para visitar a mãe.

O diretor utiliza plano contra plano nas tomadas seguintes, nas quais um diálogo entre mãe e filha é conduzido. Os cortes não são rápidos. A conversa transcorre num ritmo lento, saudoso. Maria leva um toca-fitas e coloca uma música clássica – Áurea era pianista e confessa, em um momento da vida, ainda jovem, ser a música o que ela mais sentia falta. As feições de ambas são capturadas pela câmera, sempre em close-up, enfatizando a emoção do reencontro. Esta é contida, não pendendo para o melodrama. Maria olha para a lua e conta que o homem pisou lá. Áurea a fita, surpresa, e pergunta o que o homem encontrou na lua. Ao que Maria responde, com voz tenra, quase sussurrante: “Nada. Dizem que areia.” Áurea sorri. A música aumenta, tomando conta de todo o campo de percepção auditiva. O plano geral mostra as duas sentadas. A câmera afasta-se mais, gradativamente. A casa e toda a paisagem em volta são mostradas. Enfim, com o volume da música-tema ainda mais alto, uma panorâmica das dunas é exibida.

O filme termina com a mesma imagem que começou, as dunas, a partir de uma visão panorâmica. No final, tem-se a associação com a lua, um lugar distante, hostil, mas que o homem fez questão de explorar. É o encerramento de um ciclo na vida daquelas mulheres tão diferentes, que fizeram escolhas diferentes. Através do diálogo final, percebe-se o ponto em comum que une aquelas vidas: a areia. O que, no início, era desprovido de significado, rejeitado como um espaço que não permitiria um futuro adequado, sob uma visão cultural de metrópole, passou a ser o elo das três gerações de mulheres, mesmo que hoje vivam distantes umas das outras.

Fim.

Ler a parte 3/4

Um comentário:

  1. Caíque, parabéns pela bela narrativa. Para quem assistiu ao filme, um revival. Para que não assistiu, a vontade de conhecer estas mulheres e sua relação com a areia.
    Um grande beijo.

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