quarta-feira, 14 de agosto de 2013

A (des)colonização da história da arte

Carlos Henrique Costa

A colonização europeia instituiu uma supremacia multifacetada perante os países colonizados que vai além do aspecto jurídico-político. Criou-se uma relação de poder capaz de perpetuar uma hegemonia até os tempos atuais, pós-colonização. A independência conquistada pelas colônias não foi capaz de reverter essa condição, presente na economia, na política, na educação, na relação social. Com a arte não foi diferente. Além de se apresentar como quesito de sublevação cultural, tentou-se estabelecer uma única arte válida universalmente, europeia e ocidental, sem diálogo com a arte produzida fora desse eixo. A dominação política configura-se, dessa forma, sob fortes aspectos culturais.

Desde o fim do século XV se reproduz o modelo que considera os conhecimentos produzidos no mundo não-europeu e não-ocidental inferiores. Há um profundo desinteresse dos intelectuais europeus-ocidentais pelos conhecimentos advindos de outras partes do mundo. Diferencia-se, dessa forma, o “Norte” e o “Sul”, o ocidente e o oriente, através de uma relação unilateral dos primeiros para os últimos. As teorias desenvolvidas no “Norte” são impostas ao “Sul” sem considerar as realidades distintas dos países. Institui-se o universalismo, que privilegia um “sistema-mundo ocidentalizado/cristianocêntrico moderno/colonial capitalista/patriarcal” (GROSFOGUEL, 2012). Apesar do caráter integrador que o universalismo possui, sua prática embute um sistema de exclusão.

Segundo Santos (1999), essa exclusão trata das relações de poder horizontais. Ela atua no eixo cultural de dominação. Dessa forma, o diferente é integrado ao mundo europeu-ocidental dentro de um sistema hierarquizado. A desigualdade transforma-se em exclusão.  Apresenta-se um modelo a ser seguido e, ao mesmo tempo, fundam-se normas que impedem a “evolução” dos diferentes. Perpetua-se, então, a relação de submissão cultural, a que Balandier (1993) denominou “situação colonial”.

A situação colonial é a relação entre dominador e submisso mesmo após a descolonização jurídico-política do país. Não se refere apenas a uma dominação econômica, mas fundamentalmente cultural (BALANDIER, 1993). Assim, o termo colonialismo pode ser ampliado para caracterizar toda relação de poder existente, como uma relação política, econômica, sexual, espiritual, epistemológica, pedagógica, linguística e cultural/estrutural de cunho etnorracial. Consequentemente, descolonizar assume o sentido de rompimento da relação social de poder que privilegia as populações euro-americanas em detrimento das demais (GROSFOGUEL, 2012).

A hierarquia impõe uma geopolítica do conhecimento que dita o que é visível e o que não é visível. O lugar de onde se fala – a corpo-política – influencia na magnitude do pensamento (GROSFOGUEL, 2012). Por isso, a produção criativa e intelectual dos países colonizados é sufocada, possui um alcance pequeno, pois controlado. Seguindo esse princípio, a arte também esteve no curso do colonialismo cultural. Ela teve uma história, na maior parte de sua existência, marcadamente eurocêntrica.


Salão do Museu do Louvre, em Paris
A história da arte é um produto da modernidade. Ela teve início no fim do século XIX, no decurso do conceito de estilo, surgido como um atributo que pretendia demonstrar um desenvolvimento da arte em conformidade com uma lei culturalmente estabelecida. O primeiro passo foi buscar no estilo do passado os fundamentos para determinar os princípios que norteariam a história da arte daquele em momento em diante. Assim, voltaram-se aos artistas, às suas vidas e às formas de suas obras de uma época remota. Surgiu daí o contraste entre o que buscavam os historiadores (e também os cientistas e os críticos) da arte e os próprios artistas modernos, para os quais o modelo estilístico adotado não se encaixava (BELTING, 2012).

Ao abordar a visão construída pelo historiador acerca da situação colonial, Balandier (1993) a definiu como uma descrição da mecânica da relação da metrópole com a colônia, focada, sobretudo, no fator econômico. Os processos de resistência e a dinâmica social de poder não foram esmiuçados por eles. Prevaleceu uma visão a partir do dominante, eurocêntrica e ocidental. Os historiadores da arte seguiram o mesmo caminho.
Na maior parte do século XX, a Europa Ocidental e a Oriental não possuíram nenhuma história da arte que pudessem compartilhar entre si ou à qual se referir conjuntamente. A modernidade interrompida em países como a Rússia, cuja vanguarda deu o que falar por algum tempo mesmo no Ocidente, reforçava o equívoco de que a modernidade ocorrera apenas no Ocidente, como se ela não tivesse sido sempre reprimida no Leste, onde, aliás, o transcurso do tempo foi em geral totalmente diferente para cada um dos países da Europa Oriental.” (BELTING, 2012, p. 101-102)

A história da arte sempre foi uma história da arte hegemonicamente europeia. É uma criação de uso restrito e para uma ideia restrita de arte. Ela desconsiderou o clamor artístico por uma representação fidedigna do que ocorriam nas galerias/exposições em todo o mundo. Os artistas do pós-guerra tentavam se desvencilhar dos formalismos instituídos, atacando uma arte tida como elitista, voltada a intelectuais, oficialmente reconhecida nos museus. Fazia-se uma “arte cultural”, de idéias, conceitual, uma arte viva – notadamente, os artistas dos movimentos conhecidos como surrealismo, dadaísmo e outros. Por algum tempo, a produção do artista americano Andy Warhol permaneceu incompreendida pelos europeus. Atualmente, o mesmo ocorre com a arte multimídia, cujas análises confundem-se com a história da tecnologia utilizada no processo criativo (BELTING, 2012). As obras modernas em si são alijadas da história da arte, ainda sob forte influência do modelo europeu ocidental de formalismo arraigado. Quando muito, elas constroem para si uma história da arte alternativa. Dessa forma, o trabalho dos artistas modernos – e daqueles que, em sua época, eram também incompreendidos – constitui-se num claro processo de descolonização da arte.

Com o tempo, reproduz-se o costume de atribuir ao objeto o status de arte se este foi aceito como tal pelas autoridades conhecedoras do assunto  (historiadores, cientista e críticos de arte) e por suas instituições (museus, cinemas de arte, salas de concerto)  (COLI, 2006). O que é e o que não é arte sempre foi determinado culturalmente, e sob um viés colonizador. A dominação cultural da arte cria sua própria hierarquia, fundamentada na ideologia europeia-ocidental instituída no século XIX. O conceito de obra-prima é a determinação de um nível hierárquico superior que seleciona estilos, obras e autores em detrimento dos demais. Além disso, impõe modelos formais de criação. Torna-se normativo. Estabelece uma relação de poder que exclui quem rompe com o estabelecido.   Por fim, não estreita laços com os artistas e seu público, tal qual os intelectuais do “Norte”, que não reconhecem os conhecimentos produzidos pelos intelectuais do “Sul”.

* Leia também o artigo "Afinal, alguém pode me dizer o que é arte?"

Referências

BALANDIER, Georges. A noção de situação colonial. Tradução: Nicolás Nyimi Campanário. Revista plural. PPG Sociologia. São Paulo: USP, 1993.

BELTING, Hans. A modernidade no espelho do presente – sobre mídias, teorias e museus. In: O fim da história da arte – uma revisão dez anos depois. 1a Ed. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 24-198.

COLI, Jorge. O que é arte. São Paulo: Brasiliense, 2006.

GROSFOGUEL, Ramón. Descolonizar as esquerdas ocidentalizadas: para além das esquerdas eurocêntricas rumo a uma esquuerda transmoderna descolonial. Dossiê Saberes Subalternos. Revista Contemprânea: UFSCAR, 2012.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A construção multicultural da igualdade e da diferença. CES – Centro de Estudos Sociais. Coimbra, 1999.

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