domingo, 7 de abril de 2013

Quero ver você passar... bem longe daqui


Carlos Henrique Costa

As festas são uma oportunidade para reforçar as diferenças sociais. Os indivíduos mostram publicamente, nestas ocasiões, seu prestígio social e seu poder. Do Brasil colonial até os dias atuais, a maior festa popular do país, o carnaval, exibe a olho nu a segregação existente na sociedade. A história do carnaval reflete a opressão às minorias, ampliada atualmente pelos interesses econômicos sob a folia. A cada ano, os blocos afros sofrem dificuldade para ir às ruas no carnaval de Salvador. Sem patrocínio, com uma ajuda pífia do governo e com os piores horários de desfile, a cultura afro é agora disseminada pelas músicas cantaroladas pelas estrelas da axé music e pelo orgulho identitário da baianidade nagô. Nesse contexto de segregação cultural, o projeto de criação de um circuito exclusivo para os blocos afros, intitulado Afródromo, pleiteado pela Liga dos Blocos Afros, apresenta-se como uma tentativa idêntica de separar essas entidades, afastá-las do circuito comercial, no qual a mídia, os patrocinadores, as autoridades e os demais foliões poderão desfilar seu prestígio e ostentar sua posição social com toda a tranquilidade.

No período colonial1, as celebrações que ocorriam mobilizavam toda a cidade. Era comum as autoridades da época solicitarem aos moradores ornamentar a fachada de suas casas com “luminárias”. Nas regiões mais ricas da colônia, os comerciantes ornamentavam até as praças públicas num claro intuito de mostrar o seu lugar na comunidade. Assim, o comerciante que oferecesse mais “luminárias”, mais status adquiria em relação aos demais e mais poder reafirmaria em relação à comunidade. Os festejos eram, portanto, oportunidades de manifestar as relações de poder existentes nas cidades.

A história do carnaval2 é também marcada por relações de poder. Independente da época, a elite sempre deteve o controle do processo de legitimação da festa. Ela dizia o que se podia e o que não se podia fazer, criando uma separação entre as classes sociais. Com o apoio do Estado, tentava a todo custo civilizar a barbárie do entrudo e demais manifestações populares. Na década de 1920, por exemplo, o Corso era a principal manifestação carnavalesca da elite. As famílias burguesas desfilavam em seus longos carros pela Avenida Central, no Rio de Janeiro, com vestimentas luxuosas. Os grupos populares que quisessem participar tinham que se contentar com o espaço entre a fila de veículos e os canteiros centrais da avenida. Anúncios nos jornais, publicados pelo chefe da polícia local, advertiam os participantes do impedimento que seus grupos poderiam causar aos veículos do Corso ao tentar desfilar na mesma avenida. O preço a pagar pela desobediência era a expulsão do local. O único dia permitido para que os grupos populares desfilassem era a segunda-feira, mas só a partir das 21 horas.

O espaço do desfile sempre foi uma briga entre grupos populares e da elite. No carnaval de 2006, em Salvador, o cantor Bell Marques, vocalista da banda Chiclete com Banana – bloco de trio cujo associado desembolsa mais de dois mil reais para brincar três dias –, com a ajuda da Polícia Militar que fez um cordão de isolamento, impediu o bloco Afoxés Filhos de Gandhy de adentrar à avenida Carlos Gomes. O motivo seria o atraso que o afoxé vinha causando no desfile do bloco de trio por seguidos anos. A regra que definia a ordem de desfile das entidades favorecia ao afoxé. Foi, portanto, uma clara demonstração do poder econômico, sob a égide do Estado, que deixa cada vez menos espaço para blocos carnavalescos de menor expressão de mercado, mas não menos tradicionais.

O Afoxés Filhos de Gandhy é um dos integrantes da Liga dos Blocos Afros, associação que reúne os blocos carnavalescos que sofrem dificuldades para desfilar todos os anos e cujos foliões são, em sua maioria, pessoas de baixa renda, negros. Deslocados do circuito comercial da festa, com pouca possibilidade de conseguir patrocínio, pois lhes são concedidos os piores horários de desfile, o que não lhes assegura visibilidade, contam somente com a ajuda do governo para ir às ruas. Na tentativa de devolver o prestígio para essas entidades, a Liga apresentou à Prefeitura de Salvador um projeto de criação de um circuito exclusivo, dedicado aos blocos afros, chamado Afródromo. As autoridades reservaram o comércio, espaço nunca utilizado para a festa, com graves problemas de infra-estrutura – as políticas de preservação dessa área não surtiram efeito até então.

Única entidade a rechaçar a ideia do Afródromo, o bloco afro Olodum, representado por seu presidente João Jorge, considera esta uma reivindicação contraproducente3. Para ele, os blocos afros deveriam pleitear um patrocínio equitativo, a distribuição mais justa dos recursos públicos destinados à festa, a revisão da ordem do desfile para dar visibilidade a todos. Enquanto prevalecer o privilégio imposto pelo capital, a segregação continuará.
Logotipo do projeto.
O carnaval de Salvador sofre forte apelo econômico. Todos querem lucrar com a festa. Assim, privatiza-se o espaço público, ocupam-se cada vez mais as avenidas com os grandes blocos de trio, verdadeiras marcas que espremem o folião pipoca e reservam menos espaço para as entidades afros. Do colonialismo ao capitalismo, o poder econômico sobrepuja a alegria. Assim como o Corso, os trios de corda espremem os foliões-pipoca e detêm o controle do processo de legitimação da festa. Nesse sentido, o projeto de criação do Afródromo ajuda a reafirmar a relação de poder existente e não soluciona os problemas das entidades de menor poder econômico.

O Afródromo causará um isolamento, prejudicial ao conceito de interculturalidade, no qual as diferenças são expostas e confrontadas. Se o projeto for executado, os blocos integrantes da Liga dos Blocos Afros persistirão invisíveis na folia, com os mesmo problemas para pôr-se nas ruas. O novo circuito não será uma ilha isolada, onde um carnaval totalmente independente acontecerá. Ele representa apenas a ilusão de que uma solução foi tomada. Enquanto isso, os blocos de trio continuarão desfilando seu poder aquisitivo pelas principais avenidas da cidade.

Notas

1 Conforme Mary Del Priore em “Festas e Utopias no Brasil Colonial”, publicado em 2000 pela editora brasiliense.
2 “O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro”, de autoria de Felipe Ferreira, conta em detalhes a história da maior festa popular do país.
3 O posicionamento de João Jorge pode ser conferido na entrevista que concedeu à Folha de São Paulo em 11/02/2013, disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/93300-a-bahia-virou-a-terra-de-uma-artista-so-ivete-sangalo.shtml.   

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