quinta-feira, 18 de abril de 2013

A Cultura do Vazio

Carlos Henrique Costa

A capa da edição 734 da revista Carta Capital (Ilustração 1) já deixa clara a sentença dada pelos juízes-jornalistas ao tema. O martelo foi batido: a cultura brasileira atual é estéril. O título “O Vazio da Cultura (ou A Imbecilização do Brasil)” é mostrado dentro de uma moldura vazia e, ao seu lado, retratos de artistas renomados, de uma outra época. Esses elementos são, por si só, suficientes para o leitor sentir-se no século XVIII, quando a discussão em torno do conceito de cultura começou e se fortaleceu no século XX. Embora seja um tema até hoje debatido, percebe-se que ainda há quem recorra aos conceitos iniciais para defender gostos pessoais, por vezes carregados de argumentos preconceituosos.

Capa da edição 734 de Carta Capital

Na Era das Luzes, no século XVIII, pensadores franceses apregoaram que a cultura é alcançada mediante um conjunto de práticas, como artes, ciências, técnicas, filosofia e ofícios. Buscar essas práticas era sinal de progresso, evolução social. Dessa forma, instituía-se uma referência a ser perseguida pelas demais nações. A cultura era, então, medida do grau de civilização de uma sociedade (CHAUÍ, 2008). Assim, também segundo Cuche (2002), ela era considerada um “processo que arranca a humanidade à ignorância e à irracionalidade”. Enquanto a cultura evocava o progresso individual, a civilização evocava o progresso coletivo. O primeiro era insistentemente incentivado para se alcançar o segundo.

A antropologia nascida no século XIX reforçou o conceito Iluminista e estabeleceu a Europa capitalista como modelo de progresso, de cultura evoluída. Com isso, legitimou-se a colonização e o imperialismo (CHAUÍ, 2008). Estava instaurada, de forma explícita, uma hierarquia: culturas que não seguiam os valores capitalistas europeus, com forte apelo para as artes e as ciências, eram consideradas inferiores. Thompson (1999) afirma que o termo “cultura” tinha um uso elitista, voltado para reverenciar a nobreza intelectual europeia. Esse etnocentrismo levou pensadores Alemães, descontentes com seus nobres inspirados nos costumes franceses, a conclamar uma identidade nacional que reunisse as múltiplas culturas lá existentes. Pela primeira vez, o termo era utilizado no plural, com conotação de diversidade. A ideologia alemã visava, assim, devolver o orgulho ao seu povo, até então muito influenciado pelas ideias francesas (CUCHE, 2002).

O fim do etnocentrismo deu-se apenas no século XX com o aparecimento da antropologia social e da antropologia política. A partir de então, os europeus passaram a incorporar os conceitos dos filósofos alemães, nos quais o homem era considerado um agente histórico produtor de símbolos (CHAUÍ, 2008). Apesar da aceitação dos pensamentos alemães, as duas vertentes do conceito de cultura – a alemã particularista e a francesa universalista – são ainda hoje muito utilizadas. Mesmo com o reconhecimento da diversidade e da necessidade de valorização individual, a (des)qualificação das culturas permanece em muitas análises de especialistas e autoridades, moldando uma estrutura hierárquica e tecendo um ideal superior a ser perseguido.

A matéria principal de Carta Capital, de autoria de Rosane Pavam, editora de Cultura da revista, é um exemplo desse discurso. Ela é composta de três artigos e duas entrevistas. Rosane é autora do primeiro artigo, cuja finalidade é introduzir o tema debatido por especialistas (autoridades no assunto) nos textos posteriores. Foram convidados Vladimir Safatle, filósofo e colunista da mesma revista, Daniela Castro, escritora e curadora independente, além de Kleber Mendonça, diretor do filme “O Som ao Redor”, e Alfredo Bosi, crítico e professor emérito da Universidade de São Paulo. Embora envolta de grandes nomes da área artístico-cultural, a editora resvala no senso comum ao valorar a arte/cultura, enaltecendo em algumas afirmações nada além do que o seu próprio gosto.

O título do artigo introdutório prediz a análise conclusiva de Rosane. Em “O belo não está à venda” vê-se claramente o uso de uma palavra que denota um julgamento estético. O que a autora considera como “belo”? Tudo indica que a arte será reduzida ao que lhe é agradável aos sentidos, tendo, portanto, um caráter meramente pessoal. Nota-se o mesmo deslize no subtítulo, “A submissão ao mercado impede que a arte relevante apareça”. Aos menos atenciosos, o deslize pode passar despercebido, já que é consenso o preterimento da indústria cultural a certos bens simbólicos.  Mas caracterizar uma arte como relevante seria preterir um conjunto de obras a outras, teria o mesmo efeito do mercado.

Chauí (2008) afirma que o capitalismo global instituiu uma divisão cultural marcada por relações de poder entre cultura dominante e dominada, opressora e oprimida, de elite e popular, formal (ou letrada) e popular (a que é produzida espontaneamente). Todo bem cultural é, então, acompanhado por um valor de mercado. Por isso, há obras raras e caras, destinados a privilegiados, formando uma elite cultural. Por outro lado, há obras baratas e comuns, produzidas em série, destinadas à massa. Portanto, a editora cultural do semanário está correta ao afirmar, no subtítulo e no decorrer do seu texto, que o mercado dificulta o acesso de todos às diversas manifestações artísticas. Mas, ao qualificar como relevantes as obras inacessíveis à maior parte da população, ela repete o erro intencional da indústria: reafirma uma segregação entre elite culta e massa inculta e coloca em extremos o erudito e o popular, sem sequer considerar a interação entre ambos e os pontos que possuem em comum.

No início do texto, Rosane Pavam narra de forma sucinta a formação democrática brasileira frente ao capitalismo e declara que “tivemos períodos artísticos de brilho em condições adversas”, que “a cultura brasileira ainda não conheceu o seu apogeu” e, portanto, não é possível lamentar a sua decadência. Começa, então, a citar artistas renomados que, para ela, são referências culturais. Mas o são também para aqueles que saíram da condição de miséria e são hoje classificados como classe média? As “referências” culturais não são universais, principalmente em um país diverso como o Brasil. Apesar disso, ela afirma haver um “vazio cultural” ou, na tentativa de abrandar seu julgamento, um “vazio de relevância” – a palavra adjetivante aparece aqui mais uma vez.

Diversos outros trechos podem ser transcritos para confirmar a tendenciosa imposição do gosto pessoal da jornalista aos leitores. Em um deles, ela afirma:
As obras essenciais negam a arte como mercadoria, a massificação cultural, daí se encontrarem interditas em guetos de produção, impedidas de crescer. Mas as resistências se ensaiam neste momento, por exemplo, na música paraense tanto quanto na carioca ou paulista, e outros exemplos se somam, ainda que sob relativa escuridão.” (PAVAM, 2013, p. 42)
Diante deste trecho, pode-se imediatamente questionar: quem produz e quem consome tais obras classificadas como essenciais? E quem consome as obras classificadas como irrelevantes? A autora não entra nesse mérito.

Em um determinado momento do documentário “Os Doces Bárbaros”, de Tom Job Azulay, que relata os acontecimentos do show comemorativo dos 10 anos de carreira de Gilberto Gil, Maria Bethânia, Gal Costa e Caetano Veloso, que percorreu as principais cidades brasileiras, o grupo participava de uma coletiva de imprensa em São Paulo, onde seria a estreia da turnê, e um jornalista perguntou-lhes se aquele seria apenas mais um produto feito para consumo imediato. Caetano, então, retrucou: “Mas é claro que é mais um produto”. Insistindo no tema, o jornalista pergunta se não é mais um trabalho feito para tocar no rádio. Caetano responde novamente: “Claro, como todo mundo. Não conheço ninguém que faça o oposto”. Gilberto Gil, incomodado com a pergunta, diz que sempre compõe músicas para tocar no rádio, mas, infelizmente, nem todas são executadas. Baseando-se na resposta dos músicos, qual seria o sentido de produzir uma obra se não esperar que ela seja apreciada por um público e que chegue a tantas pessoas quanto possível? E a apreciação, gerada uma sensação esperada no observador, pode resultar no consumo, ou seja, na compra da obra. Assim, não é possível conceber um artista que não crie esperando reconhecimento e retorno financeiro de seu trabalho, independente de estar ou não se valendo das tendências do mercado para tal.

Um outro ponto a ser considerado no trecho do artigo da revista é o uso da música “essencial” como forma de resistência à música “irrelevante” produzida pela indústria. Ela cita cidades onde essa resistência estaria ocorrendo. Não por coincidência, essas músicas devem contrapor-se à aparelhagem paraense, ao funk carioca e ao pagode romântico paulista. Estes são os produtos culturais depreciados pela autora.

Em se tratando de definição de arte, Coli (2006) afirma que ela pode ser compreendida mais facilmente se analisada a cultura na qual está inserida. Dessa forma, o objeto só é artístico se foi aceito como tal pelas autoridades conhecedoras do assunto. Se está no museu, por exemplo, torna-se objeto de contemplação capaz de provocar sentimentos no público. Mesmo a negação da arte, como a obra “A Fonte” de Duchamp, o famoso mictório, torna-se arte ao ser absorvida pelas autoridades e expostas nas instituições competentes. A antiarte é, assim, advinda da vontade de transgredir as convenções da cultura. O que é e o que não é arte é, então, determinado culturalmente. Sem a cultura, a arte não existiria. E, portanto, valorá-la como irrelevante é ignorar o significado que ela possui no público que a observa/frui/consome.
Podemos dizer também que a arte, em certos casos, torna-se insígnia de uma 'superioridade' que um grupo determinado confere a si mesmo. Interessar-se pela arte significa ser mais 'culto', ter espírito 'mais elevado', ser diferente, melhor que o comum dos mortais.” (COLI, 2006, p. 105) 
Ser apreciador da relevante, essencial, genuína arte é status. Os integrantes do seleto grupo de apreciadores precisam defender a qualidade artística das obras que consomem, utilizando por vezes discursos técnicos, no intuito de manter-se afastados do que é tido como “vazio”, normalmente consumido por camadas da população de posição social mais baixa. Ao comparar os artistas do presente e do passado, Rosane Pavam desconsiderou os diferentes contextos sócio-políticos. O capitalismo de antes não é o mesmo de hoje, em que os bens simbólicos são apropriados por empresas e transformados em produtos. Nesse aspecto, qualificar um bem cultural como (ir)relevante é voltar no tempo e reafirmar o conceito Iluminista de cultura, no qual era necessário educar o “povo” para torná-lo culto, um apreciador da “boa arte” e conhecedor das ciências. É manter-se afirmando um conceito que exclui intencionalmente uns e eleva outros bens culturais por mero preconceito. É perpetuar a Cultura do Vazio, que supostamente aflige o país. O artigo da Carta Capital peca ao tratar a arte como uma disciplina estática, que não acompanha as mudanças culturais.

Referências
COLI, Jorge. O que é arte. São Paulo: Brasiliense, 2006.

CUCHE, Denys. Gênese social do termo e da ideia de cultura. In: A noção de cultura nas ciências sociais. 2a. Ed. (trad. Viviane Ribeiro). Bauru: EDUSC, 2002, p. 9-31.

CHAUÍ, Marilena. Cultura e Democracia. In: Coleção Cultura é o quê?, Egba – Secretaria de Estado da Cultura da Bahia, Salvador, 2008.

THOMPSON, John. Ideologia e Cultura moderna: Petrópolis, Vozes, 1999.

PAVAM, Rosane. O belo não está à venda. Carta Capital, n. 734, p. 40-42, fev. 2013.

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